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MARCONE MOREIRA: CONJUNÇÃO

Um projeto de fernando mota

para bergamin & gomide

são paulo, 2020

Na última exposição do ano, que acontece entre os dias 12 de novembro a 19 de dezembro de 2020, a Bergamin & Gomide apresentou a individual “Marcone Moreira: Conjunção”, realizada em colaboração com Fernando Mota e texto de Aracy Amaral. Serão cerca de 20 obras que compreendem quase 20 anos da trajetória do artista maranhense Marcone Moreira, abrangendo linguagens como pintura, escultura, instalação, entre outros.

O trabalho de Marcone Moreira está relacionado diretamente à memória de materiais impregnados de significados culturalmente construídos. Destacam-se os materiais escolhidos para compor as peças, retirados de carrocerias de caminhões e embarcações, chapas de ferro e artefatos de trabalhos.

O artista  desenvolve  uma  metodologia  em  que  interessa  especialmente  a  apropriação, o deslocamento e a troca simbólica de materiais, a partir de procedimentos que visam a representação da cultura popular na arte contemporânea.

Esses procedimentos de apropriação e justaposição de objetos ou de suas partes que orientam sua prática criativa, que se expandem para além do que é pensado como seu habitual domínio, como se fosse algo próprio da natureza do objeto. Observa-se a capacidade de ser mais de uma coisa a cada instante, jamais rendendo-se a uma redução de significados.

Não à toa que as ideias de deslocamento do objeto estejam presentes na obra de Moreira, a cidade de Marabá no estado do Pará, em que vive atualmente - e que viveu durante a adolescência -, é local de passagem e trânsito de mercadorias e pessoas. Desde o início de sua trajetória, afirma a importância da cidade amazônica em sua produção - ao selecionar, seccionar, agrupar e ressignificar como coisa sua – transforma os materiais que ali coleta em obras de arte.

Na obra Sacrifício (2005), Marcone Moreira utiliza materiais provenientes de carrocerias de caminhões, como madeira e parafusos, para compor uma ideia de cruzamento. Ao sintetizar as linhas no formato de cruz, experimenta algo menos volumoso, criando assim um campo de ocupação espacial com peças que são originalmente ornadas com signos e grafismos. Dessa forma estabelece uma relação com os aspectos simbólicos dos cruzamentos, como a estrutura de trânsito e o entroncamento de vias, referências diretas às transformações do deslocamento na região amazônica com a construção da Rodovia Transamazônica, em que as estradas substituíram os rios e os caminhões os barcos.

 

Nos últimos anos, Moreira também passou a experimentar como prática artística a marcenaria e a pesquisar espécies de madeiras que pudessem compor suas obras, como no trabalho Dádivas (2017-2020), no qual esculpe réplicas das castanhas do côco Babaçu.

No estado do Maranhão, o extrativismo do óleo do côco Babaçu - utilizado na indústria farmacêutica e cosmética - é uma atividade essencialmente feminina, extremamente desvalorizada e laboriosa. As mulheres usam como método de extração do fruto um procedimento ancestral: batem o porrete sobre um machado, repetidamente, até que fique gasto, ação que imprime personalidade ao objeto a partir do gesto de cada mulher, como uma formação de estrutura óssea.

Moreira viu aqui uma inspiração para sua própria elaboração artística, na qual o conceito    do trabalho é o próprio trabalho. Com o objetivo de mimetizar o labor dessas mulheres, ao esculpir em madeira centenas de castanhas, pratica a observação, concentração, repetição e exaustão.

Profundamente conectado com suas raízes amazônicas, para Marcone Moreira a árvore é uma dádiva, representa o milagre do ciclo da natureza, parte do complexo ecossistema e de processos biológicos fundamentais para a existência da vida. A árvore é conjunção - une e reúne em um só corpo formando uma unidade -, nos dá a madeira, que já foi várias coisas e que hoje se transforma em obra de arte.

Marcone: o tempo do fazer suado exausto

por Aracy Amaral

 

1. Celebrar o trabalho mesmo que inadvertidamente a motivação emergindo observamos a série de realizações/opções ao longo do tempo parece ser o da obra de Marcone Moreira.

2. Difícil escapar da indagação: qual é afinal o começo de um artista? Como desperta desejo o impulso do fazer? os outros em atividade? Olhando em casa fazendo? atração por muros carvão ou materiais lápis caneta papel e aquarela? Observando as coisas à volta? Anotando mentalmente o que vê? Ajudando acompanhando os outros À medida que a mão obedece à vontade o desejo de fazer mais fazer melhor ou A busca por outros materiais.

3. Fascínio pelo cartaz de rua abandonado “adivinhando” a pintura descorada usada raspada dando a outra nova visualidade. A vontade de cortar esses fragmentos usados reconstruindo-os em composição inesperada divorciada da primeira ou segunda ou terceira versão.

 

4. No processo de desconstrução: a beleza em si do fragmento. O todo separado em partes encerra um segredo beleza antes oculta impensada.

 

5. A surpreendente remontagem. Visualidade emergente nos fragmentos recortados geometricamente. assepsia da composição emergente.

 

6. Encantamento da cor da matéria vivenciada no tempo. Resgate do tabuleiro manual de xadrez ou de damas. Na beleza dos quadrados inseridos no quadrado elegância da simplicidade bicolor dos quadrados impecavelmente desenhados no plano da partida.

7. A motivação é do calor do ritmo da luz da cidade da periferia do povoado da oficina do vizinho que faz. O fazer é o reflexo daqueles que igualmente se apropriam das mensagens detritos comunicacionais remontados fascinantes coloridos urbanos suburbanos fluviais espaciais poderosos na imensidão verdejante.

 

8. Neste ponto recorro a um trecho do crítico britânico sir Herbert Read – de quem Mario Pedrosa grande admirador – quem registrou que “As pessoas que fazem coisas – não tenho evidencia além de própria observação – parecem menos suscetíveis a colapsos nervosos, e uma das formas de tratamento para problemas mentais é conhecida como ‘terapia ocupacional’. Ninguém sugeriria a função da arte seja meramente manter saudáveis as pessoas; mas ela tem seus efeitos subjetivos. O artista não apenas cria um objeto externo a si: ao fazê-lo ele também reorganiza vitalmente o equilíbrio de impulsos dentro de si”.

E ainda prossegue nesse texto: “Nosso olhar em relação à função social da arte portanto reforça o conceito libertário da arte. Todos os tipos de arte não são meramente permissíveis, porem desejáveis. As necessidades da sociedade compreendem, não apenas a estrutura externa num mundo para se viver, mas também uma estrutura interior de uma mente capaz de usufruir a vida”. E termina esse pensamento: “Devemos em consequência buscar métodos de estimular o artista – o artista latente dentro de cada um de nós”. (Herbert Read, To Hell With Culture, Schoken Books, New York, 1976, p. 123, trad. da autora).

"MARCONE MOREIRA: CONJUNÇÃ0"

BERGAMIN & GOMIDE, são paulo, 2020

fotos [photos]: fernando mota

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