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DO SAGRADO E DO PROFANO

Com Alex Cerveny, Ana Mazzei, Elle de Bernardini, Moisés Patrício, Paulo Lobo, Regina Silveira, Renato Rios, Rodrigo Garcia Dutra, Selva de Carvalho, Verena Smit e Zé Carlos Garcia

GALERIA KARLA OSORIO, Brasília, 2021

“Em muitos momentos o velho e o novo, a dor e o prazer, o temor e a alegria apareciam prodigiosamente entremesclados. Tão logo estava no céu como no inferno, e muitas vezes nos dois ao mesmo tempo.”
Herman Hesse - O lobo da estepe

[INTRODUÇÃO]

A exposição Do Sagrado e Do Profano propõe a análise, discussão e releitura de ambos os conceitos e suas interpretações, à primeira vista dados como opostos. A partir da justaposição e da ambigüidade encontradas em elementos tanto visuais quanto teóricos nas obras dos artistas, a mostra visa provocar duvida e estranhamento ao questionar os territórios pre-estabelecidos do sacro e do secular, alem de sugerir um possível terreno intermediário, mutável, (extra)ordinário.

Os artistas convidados Alex Cerveny, Ana Mazzei, Elle de Bernardini, Moisés Patrício, Paulo Lobo, Regina Silveira, Renato Rios, Rodrigo Garcia Dutra, Selva de Carvalho, Verena Smit e Zé Carlos Garcia apresentam trabalhos desenvolvidos em múltiplas linguagens, mídias e formatos, nos quais o divino e o mundano se cruzam constantemente através de termos e gestos pontuais, iconografias particulares, simbolismos universais e expressões corporais. São características que envolvem desde a criação plástica de cada artista, passando pela performance de alguns, até a participação ativa do próprio publico. O que para uns diz respeito ao sagrado, para outros pode pertencer ao campo do profano. E ainda, para terceiros, ficar no limiar entre ambas as definições. A montagem da exposição também busca realçar esse conflito e ampliar o alcance de significados das obras, explorando a riqueza e o potencial de cada uma sob novas perspectivas.

Optei por contar Do Sagrado e Do Profano pela via expográfica, dividindo a exposição em três partes e amarrando uma narrativa curatorial através do cruzamento de sinais ao longo do percurso entre as obras, enquanto analiso as pesquisas dos artistas em paralelo. Incentivo piamente que não deixe de incluir determinadas doses do seu próprio sagrado e também questionar o nosso profano.

Para mim, Arte é o lugar onde o sagrado e o profano convergem de forma mais nítida, uma vez que a vivencio não apenas no oficio do dia a dia, mas também a enxergo como filosofia de vida - e porque não, como uma espécie de religião.

[PARTE 1]

A primeira parte da exposição é composta exclusivamente de trabalhos escuros, são obras em tonalidades diferentes de preto nas mais variadas mídias, distribuídas ao longo do salão principal e numa sala adjacente. A iluminação é baixa, usando apenas pontos focais de luz sobre as obras e abolindo a iluminação geral da galeria, com o intuito de acrescentar um fator dramático e flertar com o universo do teatro através de uma montagem mais cenográfica. Dessa forma, entramos na exposição pela escuridão, como uma narrativa que se inicia na origem, num ambiente misterioso aonde os únicos sinais de luz apontam para trabalhos que aludem aos primórdios de distintas civilizações, como uma historia contada por meio de profecias, mitos e lendas.

Nesse imenso salão negro temos um sincretismo de culturas que juntas dialogam diretamente entre si via sinais e referencias em comum ou opostas. Começamos com Mea Culpa, de Regina Silveira, uma obra simbólica da artista que abre a mostra não apenas no contexto expositivo mas também posicionada na entrada fazendo referencia ao momento critico que a sociedade contemporânea vive atualmente decorrente de uma pandemia mundial: uma pia de porcelana branca revestida com inúmeras marcas de palmas de mãos pretas em sobre-vidrado. Alem do comentário obvio sobre higiene e saude inserido de forma precisa e inevitável, há o contraste do limpo e do sujo, do claro e do escuro, da superfície e do conteúdo, e ainda, dos rastros que deixamos como espécie ao longo do tempo, sem memória especifica de quem, quando ou como. A alusão à água também serve como o elemento de iniciação na trajetória da exposição, como um batismo, e por antecipação funciona como um lugar almejado por todos em busca de purificação e absolvição.

Em seguida Zé Carlos Garcia apresenta Monstra, uma imensa escultura de lona de algodão e madeira revestida de penas pretas, praticamente irreconhecível e ao mesmo tempo fascinante e intimidante - não sabemos ao certo de onde veio ou mesmo qual a forma natural desse animal excêntrico, sua cauda erguida como uma flecha em direção aos céus, as asas e torso apoiados no chão e ao centro uma esfera maciça que poderia ser tanto um olho quanto um ovo, onde nos vemos refletidos na superfície lisa como se numa bola de adivinhação cigana. Aos lados dois trabalhos que subvertem as formas do monstro: Tauromaquias, de Renato Rios, é um pequeno díptico no qual as superfícies totalmente pretas das telas possuem nos centros um circulo iluminado em cada (bolas de cristal? olhos?), onde precisamos nos aproximar para observar reproduções a óleo de cenas de touradas hispânicas retiradas pelo artista de uma antiga serie de gravuras do mestre Goya. Os touros são animais sagrados e símbolos de força, poder e resistência em muitas culturas, porem aqui os vemos minúsculos dentro desses espaços circulares atuando como parte de um tradicional ritual profano. Do outro lado da Monstra esta Buenas Noches, um grande tecido preto vertical bordado a mão por Alex Cerveny, no qual vemos em amarelo ouro o mapa da America Latina com suas bacias hidrográficas, nomes de algumas das principais cidades da região e simples desenhos do corpo humano em ascensão em determinados locais - como uma união de geografia e iconografia tecidas numa linguagem nativa, ancestral. Os contornos do mapa se assemelham à silhueta da Monstra invertida, numa relação de questionamento de representação da figura - afinal, quem “somos” os monstros?

Ainda no mesmo espaço vemos a pintura Amarração, de Moises Patricio, fazendo menção a uma expressão popular advinda de ritos de religiões afro-brasileiras, nos quais há uma promessa de “amarração” espiritual entre duas pessoas; a imagem mostra dois pequenos protótipos humanos alaranjados enlaçados por uma corda em cima de um recipiente branco com o fundo preto - as figuras se fundem no centro e a amarração literal que as une se assemelha a um ninho. Logo ao lado está o maior trabalho do salão, Oh! Vaso Grego Oh, de Ana Mazzei, no qual visualizamos outra pintura alaranjada sobre lona branca diretamente na parede, fazendo fundo para uma estrutura de madeira com tecido preto recortado em forma de vaso alguns passos à frente, criando uma ilusão ótica de profundidade; ambas as partes ainda são “emolduradas” por outro tecido preto que desce como uma cortina paralela à parede e se estende ao longo do chão em duas faixas, formando uma instalação teatral que brinca com a perspectiva do observador no espaço. Nela encontra-se retratada em um vaso grego “vazado” a imagem de um sátiro - ser mitológico metade homem e metade bode com uma ereção exagerada -, como era uma das formas usuais de contar historias e retratar divindades na antiguidade, utilizando-se de objetos ordinários como suporte. Também frutos em parte do universo mitológico grego, na ultima e mais longa parede do salão, estão dispostos numa linha horizontal sete desenhos de carvão sobre papel da serie A Balsa da Medusa, de Paulo Lobo. Baseada na renomada pintura homônima de Gericault, que retrata um trágico evento da marinha francesa no inicio do século 19 - no qual uma fragata naufraga próximo à costa do Marrocos e seus sobreviventes vivem momentos dramáticos -, a serie de desenhos apresenta o mesmo episódio porem com a narrativa contada de forma semelhante a uma historia em quadrinhos, com simples linhas pretas no estilo croqui, sem personagens, apenas a visão da balsa sendo gradativamente destroçada pela natureza. A historia da Medusa e a metáfora da Balsa de Gericault acontecem em momentos e lugares distintos da historia, todavia, em ambas há uma forte presença de elementos como drama, decepção, transformação e por ultimo o eterno embate com a morte. A calmaria se dá ao final, pela redenção e a aceitação da verdade inevitável, sem choro nem vela, é a fortuna. A sala se fecha aonde começou, na água.

O ultimo conjunto de obras escuras, presente na sala adjacente, reforça o misticismo e o caráter pagão da primeira parte. Ana Mazzei retorna com Bodas, uma aquarela sobre papel que alude a outro episódio da mitologia grega, e também com um novo vaso em um canto discreto da galeria: um desenho simples em giz pastel branco sobre linho preto, ainda estruturado em madeira como um objeto cenográfico, porem sem a aura grandiosa do seu irmão mais velho - dessa vez em escala pequena e mais próximo do retrato de um vaso comum. Logo acima, enfileirados na mesma parede, três trabalhos de Verena Smit em serigrafia sobre voil branco e placa de alumínio preta, brincam com a grafia de frases acrescentando silabas e palavras e questionando a fé com seus duplos sentidos: Promessa de um Paraíso (Perdido), Vivo na dúvida (do milagre) e Toda essa devoção me faz (ch)orar. Na parede em frente o díptico Autorretrato de Zé Carlos Garcia, duas esculturas com penas pretas saindo de encostos de antigas cadeiras de madeira que lembram molduras barrocas, como se encontrássemos um lado obscuro de nossas próprias imagens retratadas nas entranhas de um mobiliário colonial. Entre eles Paracas/Nazca, outro bordado de Alex Cerveny, agora com a silhueta agigantada do mesmo corpo minúsculo visto anteriormente no mapa latino-americano, e de seus contornos outros ícones familiares como uma faca, uma casa e uma escada. As obras em bordado de Cerveny fazem menção às linhas de Nazca, no Peru, onde geoglifos foram feitos por povos pre- colombianos no solo do deserto peruano; uma das teorias mais conhecidas mistura astronomia e cosmologia, sugerindo que as enormes incisões em formas geométricas e figurativas foram feitas com o intuito de comunicação com divindades celestes e/ou como uma forma ritualística de atrair água para a região. Na parede frontal encarando a Monstra no salão está o maior trabalho da sala, A Boa Esperança, de Selva de Carvalho, uma mistura de enchimentos com tecidos, bordados e desenhos sobrepostos, na qual vemos num fundo escuro uma jibóia verde enrolada ao centro engolindo uma figura fálica. A serpente é outro animal sagrado em diversas culturas, e nesse caso, representa também a possibilidade de um novo mundo guiado por uma perspectiva feminina. Alguns longos fios vermelhos de bordado do trabalho caem rente ao chão e abrem caminho para uma segunda obra da artista posicionada logo abaixo: eu (transe), tu transas, nós transitamos é um grupo de sete esferas de grafite, bordado e costura sobre papel, todas contendo imagens de pequenos micro ecossistemas fictícios que se complementam e abastecem um único bioma maior, o qual engloba todas essas partes por meio de um tecido contornando o conjunto por inteiro. Por fim, o ultimo trabalho do espaço é o video Lirio Meu, de Elle de Bernardini, no qual a artista performa o Butoh, uma dança-teatro japonesa conhecida como “dança das trevas”, com movimentos lentos e densos; em contraste, vemos ao fundo transeuntes e skatistas agitados, como se não estivessem no mesmo ambiente, com uma clara abordagem diferente do tempo e do espaço urbano. É nesse descompasso das sombras que encerramos a primeira parte e seguimos para a área externa da exposição, onde surgem novas cores, velhos símbolos e uma nova etapa caminhando para a luz.

[PARTE 2]

Saímos e avistamos à distancia de fora da galeria a Monstra, estática, imponente, indecifrável. A duvida é a única certeza presente nessa segunda etapa. Na parede externa do pavilhão inicial a obra Never there/Ever here, de Verena Smit, pisca em neon as primeiras letras das palavras, mudando o sentido da frase a cada momento, entre algo que esta aqui e ali, o tempo todo e em momento algum. Também entre o infinito dos céus e a firmeza terrena estão as Tessituras entre Céu e Terra, de Selva de Carvalho, corpos esguios de materiais orgânicos e tecidos entrelaçados que dançam ao vento pendurados em uma marquise como um conjunto de mobiles com vidas próprias, misturando a leveza e fugacidade do ar e a riqueza e diversidade material da terra. Ainda nesse mesmo espectro entre o que vemos e não vemos, espalhadas pelo jardim estão oito bandeiras coloridas e em preto e branco da série In Fieri, de Rodrigo Garcia Dutra, cujas composições digitais impressas em tecido mostram desenhos geométricos de círculos que aludem a planetas e satélites, formas angulares semelhantes a minérios em formação e construções e projetos arquitetônicos de Oscar Niemeyer. O titulo da serie vem do latim medieval e pode ser traduzido como algo “em estado de vir a ser”, ou seja, os segredos do espaço, do subsolo terrestre e a utopia modernista representada pelos edifícios do arquiteto brasileiro vagam no plano do indeterminado, do inconstante, do incerto.

Atravessamos o jardim acompanhados pela serie de esculturas Sagrado e Profano, de Moises Patricio, composta por vasos de cerâmica incrustados em blocos de concreto apoiados no solo ao longo da trilha entre os pavilhões. O retorno do vaso como objeto simbólico se faz por uma nova leitura, agora dentro do universo das crenças de origem afro-brasileira, que também utilizam desses recipientes tanto no uso domestico quanto para rituais; o concreto aparece como um material banal e pesado que os cerca e os prende ao chão. No meio da trilha, sustentada por enormes estruturas cilíndricas de madeira fincadas a um metro dentro do solo, esta a maior obra da exposição, como uma passagem: Com o titulo emprestado da peça de William Shakespeare, A Tempestade, de Paulo Lobo, é uma pintura de resina acrílica dividida em duas telas verticais com um tamanho total de 640 x 600 cm. Seres humanos, animais, vegetais e figuras mitológicas habitam um fundo azul vívido, como constelações brancas brilhando no manto celeste. Lobo sugere uma nova astrologia a partir desses signos oriundos da fauna e da flora brasileira, de sonhos pessoais e outras referencias externas. Alem das diferentes tonalidades que emanam da pintura conforme a incidência de luz que varia ao longo do dia e da noite, as telas não esta fixadas no chão, apenas na parte superior, um detalhe que permite o movimento fluido de acordo com as condições do tempo, levando a pintura a um dialogo direto com a magia da própria natureza. Pouco adiante outra obra colossal do artista encerra o caminho entre os pavilhões: Bodisattva Thic Quang Duc é uma pintura em óleo e chumbo sobre tela com uma área de 523 x 310 cm, posicionada em uma parede externa ao lado de um bambuzal. Sua forte coloração amarela irradia luz naturalmente e, assim como A Tempestade, se apropria da iluminação solar para alcançar uma extensa gama de matizes. A obra faz alusão à historia real de um monge budista que em 1963 ateou fogo no próprio corpo como forma de protesto contra a politica religiosa do governo local, em meados da Guerra do Vietnã; a cena foi fotografada e a imagem é considerada uma das mais icônicas do século XX. Uma escultura de chumbo acoplada à tela remete ao corpo do monge em chamas, dentro dela, uma peça de sabão representa o coração que não foi consumido pelo fogo e até hoje é mantido como uma relíquia religiosa e considerado por muitos como um símbolo de compaixão. Na exposição, a obra se encontra num lugar de contemplação, à sombra de uma grande arvore e em conversação com os bambus, no cruzamento entre o sagrado do Oriente e o profano do Ocidente.

[PARTE 3]

O pavilhão final se divide em três salas que concluem a mostra. Na primeira delas nos deparamos de cara com Goya, uma pintura a óleo sobre tela de Renato Rios que retrata de forma similar às Tauromaquias uma imagem em sépia dentro de um circulo ao centro da tela branco-azulada: outra figura lendária procedente de um trabalho em gravura do mestre espanhol, o enigmático gigante esta sentado sob um morro de costas para o publico com o pescoço levemente torcido para trás, observando quem o observa - aqui a personagem é recriada num jogo de metalinguagem ainda mais complexo devido ao formato circular semelhante a uma vigia de porta onde se encontra. Outros dois trabalhos de Regina Silveira resgatam a mensagem do inicio da exposição nessa mesma sala: Touchin White 1 traz as ja conhecidas marcas das mãos a partir de uma composição assimétrica de onze partes em gravação sobre alumínio, na qual as mãos prateadas se expandem de uma quina para as paredes adjacentes se apropriando do espaço, enquanto Touching Two é uma singela impressão de sobre-vidrado em porcelana, onde uma mão preta e outra vermelha se sobrepõem cruzadas, como se as palmas se tocassem num cumprimento informal - essa peça posicionada intencionalmente logo abaixo do titulo e próxima ao texto da exposição, como uma nota visual das diferenças e similaridades entre sagrado e profano. Outro trabalho de Zé Carlos Garcia, agora com penas brancas sobre fragmentos de mobiliário, também ocupa a sala; o histórico do artista, que aperfeiçoou suas técnicas de uso de taxidermia na arte, tem origem no Carnaval carioca. A sala é semi-aberta e portanto é natural que esta obra, junto com um novo vaso de Ana Mazzei - pela primeira vez colorido e bidimensional, em aquarela sobre linho - sejam os pontos de ligação com a quadra esteticamente carnavalesca apresentada na segunda sala.

 

O melancólico poema Carnaval, de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), permeia o ambiente narrado pela atriz Natalia Lage em uma instalação sonora de mesmo nome da artista Verena Smit. No chão, em formato de pequenos círculos de papel espalhados como confete, o poema esta literalmente dissecado: cada letra, espaço e símbolo de pontuação carimbado em preto sobre um confete branco, em contraste com o colorido e alegre carnaval de rua que conhecemos. Antes de se tornar um evento tradicional do calendário cristão, o carnaval teve sua origem em festas populares de povos politeístas da antiguidade, no entanto, atualmente pode-se considera-lo um festival que mistura diversas referencias culturais no mundo todo, um período em que as pessoas adotam hábitos dos mais profanos aos mais sagrados. Na parede em frente há duas esculturas de Moises Patricio da serie Homenagem ao Mestre Didi, ambas feitas com inúmeras xuxinhas de cabelo coloridas revestindo a superfície de buchas vegetais em formas cilíndricas irregulares, homenageando as esculturas do artista e sacerdote baiano, o qual unia sua produção artística à sua prática religiosa.

Completando o quarteto da sala, em paredes opostas uma à outra, as obras Jardim de Infância e Hieróglifo, de Elle de Bernardini; na primeira, incontáveis pedaços retangulares de feltro rosa, azul e amarelo se sobrepõem ao longo da tela, fortemente acumulados em um único corpo no lado esquerdo e gradativamente se espaçando até o outro extremo do trabalho no lado direito - as cores representam as ideias estereotipadas de gênero que aprendemos desde cedo (azul = masculino, rosa = feminino, amarelo = neutro), sobre as quais nossa sociedade foi alicerçada e esperamos romper ao longo da vida através da maturidade individual e da lenta e necessária evolução civil; a segunda obra da artista alude aos antigos hieróglifos egípcios criando uma nova linguagem codificada, através de uma sequencia de signos sexuais desenhados em linhas sobre uma tela circular, da qual ainda pendem coladas na superfície formas orgânicas e curvilíneas em couro e vinil, numa mistura de texturas, cores e formas que sugerem uma releitura das nossas anatomias e convicções sexuais.

A exposição se encerra na chamada sala branca, em um contraponto ao salão inaugural. Uma cruz é formada pelo espelhamento de dois polípticos divididos nas quatro paredes principais. Em um eixo os desenhos da serie Canibais, de Alex Cerveny, que retratam em finas linhas de tinta caligráfica rostos humanos interagindo por meio de ligações feitas com folhas de ouro sobre os papéis. O dourado exalta a energia e os valores transmitidos entre os indivíduos: as culturas, linguagens, hábitos e ideais de civilizações canibalizados constantemente por outras, num fluxo continuo de filosofias e informações miscigenadas, impuras, incertas, sem principio ou fim. O eixo perpendicular é composto pela série A Linguagem da Serpente, de Rodrigo Garcia Dutra, baseada na teoria das cordas e supercordas da física quântica, em que segundo o artista, o universo é feito de formas sinuosas que vibram e criam matéria, luz, som e cor, em ressonância com mitos indígenas que reverenciam a forma da serpente como a divindade criadora de tudo que existe. As formas geométricas dos trabalhos, pintadas com uma clara tinta automotiva sobre relevos de madeira, sugerem também uma linguagem simultaneamente futurista e ancestral, uma comunicação não verbal através de um novo alfabeto visual - que ja vimos anteriormente nas obras da serie In Fieri, expostas no jardim. Esse cruzamento panorâmico entre as series espelhadas de Garcia Dutra e Cerveny apontam para um plano de tempo/espaço em suspensão, onde passado, presente e futuro não são lineares e o resultado é um material de estudo híbrido de ciência, antropologia e misticismo. Em um dos cantos da sala, num vertice entre a serpente e os canibais, encontra-se a Cadeira de Zé Carlos Garcia, uma escultura anômala resultado da fusão entre mobiliário e animal - metade bicho, metade homem, se considerarmos a cadeira como um objeto cotidiano de representação humana. Do encosto e do assento floresce uma volumosa plumagem branca, que se abre no ar e rasteja no solo, um ser vivo e estático concomitantemente, leve e frágil, resistente e pesado. Na ultima parede da sala O menino de Oxalá, uma pintura de Moisés Patricio que retrata um menino preto vestindo uma camiseta branca com os braços para trás, os olhos fechados e a cabeça ligeiramente inclinada para baixo em sinal de respeito a um par de mãos que se aproxima, e suavemente, toca seu ombro enquanto ergue uma pomba branca acima da cabeça do garoto; a cena descreve um ritual de iniciação. Nas religiões de origem africana, Oxalá é associado à criação do mundo, simboliza a paz, seu nome significa literalmente “luz branca”. O sincretismo religioso e cultural no entanto propicia uma abordagem mais ampla da obra, já que a palavra Oxalá na língua portuguesa tem duplo significado, com uma origem paralela no mundo árabe - “in sha' Allah", cujo significado no universo islâmico é “se Deus quiser” -, além da pomba branca também ser frequentemente mencionada no catolicismo, como um forte símbolo da aliança do homem com Deus. Assim, o trabalho final da mostra também faz menção à relação humana-divina a partir da mitologia cristã: La Piedad, de Ana Mazzei, é uma escultura em madeira que reina quase centralizada no chão do espaço, com estruturas em diferentes alturas recobertas na parte superior por pedaços de feltro branco, onde o corpo do espectador deve se apoiar para ativa-la. A peça é um convite da artista para o publico experimentar sob uma nova perspectiva a celebre cena de Jesus nos braços de Maria após a crucificação - uma imagem explorada diversas vezes ao longo da historia da arte, a mais conhecida delas provavelmente a versão em mármore de Michelangelo na Basílica de Sao Pedro, no Vaticano. A versão da Pietà de Mazzei coloca o observador no lugar do corpo de Cristo, subvertendo a relação tradicional dele com a obra e propondo uma visão do episódio pelos olhos da personagem principal, ou seja, o corpo em repouso é o nosso; o trabalho só esta completo de fato quando há um engajamento participativo com a matéria, é necessário que alguém se deite sobre os feltros da peça e se ofereça como parte da escultura para que possamos enxerga-la na sua integridade. Não à toa La Piedad conclui a experiência Do Sagrado e Do Profano, no exato momento em que nos colocamos no lugar de uma entidade sagrada após a morte: nossos corpos banais suspensos em êxtase - já abençoados no percurso entre a escuridão e a luz -, vulneráveis por excelência entre o sagrado e o profano.

"do sagrado e do profano"

Galeria Karla Osorio, brasília, 2021

fotos [photos]: Fernando Mota

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