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TEXTOS/ESSAYS > DESALI

ESPERANÇAS DESALINHADAS

Nascido na periferia de Contagem (MG), Desali retrata, repensa e redimensiona na sua obra o mundo que vê e o mundo em que vive - de casa para a rua, da rua para o bairro, do bairro para a cidade, da cidade para o estado, do estado para o país. E do país, inevitavelmente, de volta para a casa.

Apesar de sua formação em Artes Plásticas na tradicional Escola Guignard em Belo Horizonte, seu trabalho esta relativamente distante de uma linguagem acadêmica convencional. Atuante em diferentes mídias, dentre as quais fotografia, video, instalação e pintura, Desali canibaliza os métodos conhecidos de cada meio para então produzir sua obra com uma linguagem própria, a qual ao mesmo tempo flerta e faz reverencia a grandes nomes e movimentos da arte moderna e contemporânea, enquanto realinha os mesmos com o universo popular e a arte de rua. É nessa intersecção que o trabalho se desenvolve, entre o banal e o magistral, o rústico e o refinado, o publico e o privado.

Com as pinturas em foco, é possível perceber essa natureza singular que atrai tanto um olhar mais apurado quanto outro despreparado. São imagens que remetem ao universo local e regional, porem fazem parte de um imaginário coletivo familiar a muitos, se não a todos. Isso porque os objetos, as paisagens e personagens que habitam e compõem as cenas apresentadas aparentam oriundos de um lugar simultaneamente especifico e indeterminado: um lugar qualquer. Utilizando tinta acrílica sobre pedaços de madeira encontrados e reutilizados como suporte, Desali produz pinturas de pequeno e medio formato que muitas vezes geometrizam e/ou destorcem as figuras conhecidas, sejam elas caras, casas ou coisas. O artista não se intimida com o uso de cores fortes e explora a variação cromática de cada uma de forma ousada e harmoniosa, ao passo que brinca com linhas e ângulos nas superfícies irregulares e incompletas das madeiras - ora absorvendo intuitivamente as falhas do material precário, ora destacando as cicatrizes de outras vidas da matéria. Assim, as pinturas possuem intenso brilho e ampla textura, facilmente perceptível aos olhos, enquanto formam uma topografia própria, desnivelada - uma colagem como parte da linguagem de base, estrutural da obra, ao invés de técnica aplicada ou ornamental, próxima ao resultado.

Junto às imagens estão palavras, algumas vezes soltas, outras em sequencia, como frases ou interjeições, ou ainda com as silabas e letras espaçadas, abrindo margem para múltiplos significados. Essas “colagens”, agora gramaticais, adicionam na obra um elemento passível de interpretação, em certas ocasiões servindo como uma interlocução direta com o observador. Assim como as imagens, as palavras são referencias visuais e auditivas do universo pessoal do artista e também podem ser facilmente reconhecidas pelo publico, porém, a ausência de pontuação e a subjetividade irão diferenciar entre uma leitura sarcástica e outra séria, formam o fator decisivo entre uma analise cômica ou dramática. A ironia esta justamente na indefinição das coisas: à primeira vista reconhecemos tudo, mas a principio não sabemos nada. As imagens são procedentes de fotografias analógicas feitas pelo próprio artista em caminhadas cotidianas, antes de se converterem em pinturas. Cabe ressaltar uma característica presente em muitas delas que faz alusão direta à linguagem da câmera: as figuras e os cenários não são vazados, ou seja, não se expandem até o limite da superfície, ao contrário, costumam estar cercados nas laterais por faixas de tinta branca que formam uma especie de moldura interna no plano, sendo a parte inferior a mais larga e onde estão as palavras, como se fossem anotações manuais feitas em fotos de Polaroide. Isso traz um aspecto de pessoalidade às obras, que por sua vez ja possuem um certo grau de intimidade devido à artesania contida nas características físicas dos materiais - alem das próprias madeiras descritas anteriormente, temos a presença visível de grampos e pregos para construir de fato o suporte.

As “foto-pinturas-poemas-colagens” de Desali são registros de um dia comum: às vezes recortes de dias calorosos e iluminados, noutras, fragmentos de dias sombrios e desesperados. São dias em que encontramos nossas esperanças desalinhadas com o mundo - seja para cima ou para baixo; por um breve momento, compartilhamos dos tempos difíceis onde a sociedade atual desanda, e também, daqueles pequenos instantes diários nos quais ela sutilmente desaba.

 

Desali_Parem de Trabalhar_2014-edit.jpg

Desali

Parem de Trabalhar, 2014

FOTO: FERNANDO MOTA

texto feito para a exposição “Esperança”, curadoria Simon Watson - Museu de Arte Sacra, São Paulo, 2021

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